1.Diálogo sobre a ética kantiana, Luís Veríssimo


João: Estou profundamente desiludido com a teoria de Kant.
Francisca: Pois eu nunca engoli muito bem a ética kantiana. Dá excessiva importância à intenção, mas esquece-se de que na prática só temos acesso às consequências.
Maria: O quê? A mim parece-me uma excelente teoria. Julgo que o imperativo categórico ("Age unicamente de acordo com a máxima que te permita querer a sua transformação em lei universal") é realmente um princípio ético fundamental e universal. Fundamental porque é dele que brotam todos os nossos juízos morais, e universal porque qualquer agente racional tem de o aceitar.
João: Ora aí está uma coisa que eu não percebo. Porque é que o imperativo categórico é um princípio racional? Porque é que uma pessoa racional não pode rejeitá-lo?
Maria: Hmmm... Uma pessoa racional tem de ser coerente, não é?
João: Sim, e depois?
Maria: Então imagina que alguém diz isto: "Eu posso quebrar as promessas que faço, mas não quero, aliás não posso querer, que todos quebrem as promessas que fazem." Julgo que quem pensa assim, rejeitando o imperativo categórico, está a ser incoerente, não te parece? Julgo que o imperativo categórico é uma simples exigência de coerência que nos impede, entre outras coisas, de abrir excepções convenientes para nós próprios. Portanto, qualquer pessoa racional tem de aceitá-lo.
João: Talvez tenhas razão... Talvez seja verdade que, como agentes racionais, temos de agir apenas segundo máximas que possamos universalizar. No entanto, este princípio parece-me vazio, uma pura formalidade sem as implicações práticas que Kant pretendia. Não serve, por exemplo, para resolver conflitos entre deveres.
Maria: Como assim?
João: Imagina que um amigo teu está a fugir de um assassino e pede para se esconder em tua casa. Atrás dele vem o assassino e pergunta-te se essa pessoa se escondeu em tua casa. Segundo Kant, devo dizer a verdade em todas as circunstâncias, uma vez que os nossos deveres são categóricos, ou seja absolutos e incondicionais. Mas também temos o dever de ajudar um amigo em necessidade, porque não posso querer consistentemente que toda a gente deixe de ajudar os amigos em necessidade (isso não só me impediria de poder ajudar os meus amigos, como também me deixaria privado de toda a chance de obter ajuda quando precisasse). O que devo fazer nesta situação?
Francisca: O problema é esse, para encontrar um princípio absoluto e universal, Kant parece ter-se esquecido das circunstâncias concretas em que nos encontramos quando agimos. A mim parece-me claro que, neste caso, o mais correcto seria mentir e afastar o assassino do nosso amigo.
Maria: Mas repara que se toda a gente andasse para aí a mentir, a mentira deixaria de fazer sentido, porque toda as pessoas deixariam de acreditar umas nas outras.
Francisca: Acho que existe aqui outro problema!
Maria: Que queres dizer?
Francisca: Suponhamos que estou disposta a aceitar que só devemos executar as acções que tenham origem em máximas que possamos querer ver transformadas em leis universais.
Maria: Sim, é esse tipo de comportamento que Kant espera de agentes morais, racionais.
Francisca: Pois bem, um sado-masoquista poderia querer que a máxima "maltrata o próximo" se transformasse numa lei universal. E, no entanto, esta máxima vai contra aquilo que intuitivamente achamos correcto.
Maria: Hum... Acho que Kant responderia a isso dizendo simplesmente que o sado-masoquista não está a ser um agente moral, racional, dado que se está a deixar guiar por um gosto (ou inclinação) pessoal e subjectivo, em vez de agir por dever.
João: Bem, acho que podemos admitir que o imperativo categórico nos impede de mentir a torto e a direito e de maltratar o próximo. Mas, ainda assim, continuo a achar que a ética kantiana é vazia...
Maria: Como assim?
João: É vazia de emoções. Como podem emoções como a compaixão, a simpatia e o remorso não ter nada a ver com a moral?!
Maria: Estás-te a referir àquela passagem em que Kant nos fala de uma pessoa que seja de tal modo compassiva, que sem nenhum tipo de interesse ou vaidade, se alegra ao espalhar a alegria à sua volta, agindo deste modo não por puro dever mas por inclinação, certo?
João: Sim. Não me conformo com isso, acho que o papel que Kant atribui às emoções assume contornos pouco humanos.
Francisca: E por falar em humanos... O lugar que Kant atribui aos animais não-humanos na sua ética é simplesmente vergonhoso.
Maria: Que queres dizer?
Francisca: Kant apresenta outra formulação do imperativo categórico, que nos diz: age de tal forma que trates a humanidade, na tua pessoa ou na pessoa de outrem, sempre como um fim em si e nunca apenas como um meio.
Maria: Sim, mas isso só vem salientar o valor intrínseco que temos enquanto seres racionais, a dignidade humana.
Francisca: Pois, o problema é que, além disso, Kant diz coisas como "no que diz respeito aos animais, não temos deveres directos. Os animais [...] existem apenas como meios para um fim. Esse fim é o homem."
João: Que horror!
Francisca: Nesse aspecto, o utilitarismo veio finalmente propor uma teoria ética que coloca animais humanos e não-humanos na mesma categoria moral. E ainda há mais, o tratamento que Kant prevê na sua ética para os criminosos é desumano.
João: Como assim?
Francisca: A sua teoria é retributivista.
João: O que quer isso dizer?
Francisca: É tipo "Olho por olho, dente por dente": o crime deve ser pago na mesma moeda, o que quer dizer que nos casos de homicídio Kant era a favor da pena de morte.
João: E o que aconteceu ao "trata a humanidade sempre como um fim em si mesma"?
Maria: Calma. Kant explica isso da seguinte maneira: segundo o imperativo categórico, quando decidimos correctamente o que fazer, é porque podemos querer que a máxima subjacente à nossa acção se converta em lei universal, ou seja, se alguém maltrata um ser humano é porque acha que essa é a forma como devemos tratar as pessoas, e por isso é assim que quer ser tratado.
Francisca: Bentham afirmou que "Toda a punição é danosa". Isto porque punir implica sempre tratar mal as pessoas, e não devemos retribuir o mal feito com outro mal. O retributivismo leva-nos a aumentar, e não a diminuir, a quantidade de sofrimento no mundo.
Maria: E como defende o utilitarismo que devemos tratar os criminosos?
Francisca: Os criminosos não precisam de punição, mas de tratamento. Alguém que viola a lei, mostra não ter respeito pelas normas sociais, e torna-se potencialmente perigoso para a sociedade, por isso deve, antes de mais, ser detido. Mas enquanto está detido, deve ingressar num programa de reabilitação tendo em vista a sua reinserção na vida em sociedade.
Maria: Mas só estás a considerar os aspectos negativos da ética kantiana, não achas que também existem aspectos positivos?
Francisca: Eu acho que a ética kantiana está desactualizada. Não oferece quaisquer regras que permitam orientar-nos na prática. Além disso dá demasiada importância à intenção, e no dia-a-dia lidamos sobretudo com as consequências das nossas acções. Isto significa que idiotas bem-intencionados que acabem, involuntariamente por causar várias mortes em consequência da sua incompetência, podem ser moralmente inocentes à luz da teoria de Kant.
Maria: Isso explica-se porque as consequências das nossas acções escapam muitas vezes ao nosso controlo e, para Kant, dever implica poder, ou seja, só somos responsáveis por aquilo que podemos controlar.
João: Sim, nesse ponto estou de acordo com Kant... mas espera aí! Perguntavas há pouco se não existiriam aspectos positivos na ética kantiana, gostava que me falasses um pouco mais sobre eles.
Maria: Gostaria de destacar essencialmente dois aspectos: a autonomia e a universalizabilidade. O primeiro prende-se com o facto de procurar o fundamento da moral em nós próprios, em particular, na nossa capacidade racional. Quer concordemos na totalidade com a teoria kantiana quer não, temos de reconhecer que os juízos morais têm de se apoiar em boas razões.
João: Que queres dizer?
Maria: Repara, um juízo moral é diferente da expressão de um gosto pessoal.
João: O.K., entendo isso, mas gostava que explicasses melhor.
Maria: Então é assim: se alguém diz "Eu gosto de chocolate", não necessita de apresentar razões para isso, está apenas a declarar um facto sobre si mesmo, nada mais.
João: Sim, continua...
Maria: Agora suponhamos que alguém diz que eu devo fazer isto ou aquilo (ou que fazer aquilo seria errado). Pode-se legitimamente perguntar por que motivo se deve fazê-lo (ou por que razão seria errado fazê-lo), e se a pessoa não nos puder dar qualquer boa razão podemos rejeitar o conselho como arbitrário ou infundado.
João: Muito bem, já percebi. E em relação ao segundo aspecto, a universali....
Maria: A universalizabilidade. Como vimos, Kant pensava que, para que uma acção fosse moral, a máxima subjacente teria de ser universalizável. Teria de ser uma máxima que se aplicaria de igual modo a todas as pessoas. Este requisito é o garante da imparcialidade exigida por toda e qualquer norma moral. E, aliás, a igualdade de todos os cidadãos face à lei é um pressuposto básico de todas as sociedades democráticas do mundo contemporâneo.
João: Por falar nisso, como achas que se passa do plano moral ao plano legal?
Francisca: Pessoal, já viram as horas? Acho que esta conversa vai ter de esperar ou perdemos a camioneta.
João: Tens razão vamos embora. Até amanhã, Maria!
Maria: Até amanhã.
Luís Veríssimo
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Questões de revisão
1. O que nos diz a 1ª fórmula do Imperativo Categórico de Kant?
2. Explica em que consiste a terceira objecção à ética kantiana apresentada no texto?
3. Para Kant em que consiste a dignidade humana?
4. Qual a diferença entre a posição de Kant e do utilitarismo, em relação aos animais não-humanos?
5. Em que consiste o retributivismo?
6. De que forma Kant justifica o retributivismo da sua teoria ética?
7. Explica em que consiste a objecção dos idiotas bem intencionados.
8. Explica em que consistem os principais contributos da reflexão moral de Kant.
Questões para discussão
1. "Faz promessas com a intenção de as quebrares, se isso for necessário para salvar um amigo." Consideras esta máxima aceitável? Porquê?
2. Uma das personagens sugere que o Imperativo Categórico é uma pura formalidade. Concordas? Porquê?
Bibliografia
Almeida, Aires e Murcho, Desidério (et. al.), A Arte de Pensar - Filosofia 10º ano, Lisboa, Plátano Editora, 2005, 1ª edição.
Rachels, James, Elementos Básicos de Filosofia Moral, Lisboa, Gradiva, 2003.


2.O anel de Giges, Platão

— Falar a favor da justiça, como sendo superior à injustiça, ainda não o ouvi a ninguém, como é meu desejo — pois desejava ouvir elogiá-la em si e por si. Contigo, sobretudo, espero aprender esse elogio. Por isso, vou fazer todos os esforços por exaltar a vida injusta; depois mostrar-te-ei de que maneira quero, por minha vez, ouvir-te censurar a injustiça, e louvar a justiça. Mas vê se te apraz a minha proposta.

— Mais do que tudo — respondi —. Pois de que outro assunto terá mais prazer em falar ou ouvir falar mais vezes uma pessoa sensata?

— Falas à maravilha — disse ele —. Escuta então o que eu disse que iria tratar primeiro: qual a essência e a origem da justiça.

Dizem que uma injustiça é, por natureza um bem, e sofrê-la, um mal, mas que ser vítima de injustiça é um mal maior do que o bem que há em cometê-la. De maneira que, quando as pessoas praticam ou sofrem injustiças umas das outras, e provam de ambas, lhes parece vantajoso, quando não podem evitar uma coisa ou alcançar a outra, chegar a um acordo mútuo, para não cometerem injustiças nem serem vítimas delas. Daí se originou o estabelecimento de leis e convenções entre elas e a designação de legal e justo para as prescrições da lei. Tal seria a génese e essência da justiça, que se situa a meio caminho entre o maior bem — não pagar a pena das injustiças — e o maior mal — ser incapaz de se vingar de uma injustiça. Estando a justiça colocada entre estes dois extremos, deve, não preitear-se como um bem, mas honrar-se devido à impossibilidade de praticar a injustiça. Uma vez que o que pudesse cometê-la e fosse verdadeiramente um homem nunca aceitaria a convenção de não praticar nem sofrer injustiças, pois seria loucura. Aqui tens, ó Sócrates, qual é a natureza da justiça, e qual a sua origem, segundo é voz corrente.

Sentiremos melhor como os que observam a justiça o fazem contra vontade, por impossibilidade de cometerem injustiças, se imaginarmos o caso seguinte. Dêmos o poder de fazer o que quiser a ambos, ao homem justo e ao injusto; depois, vamos atrás deles, para vermos onde a paixão leva cada um. Pois bem! Apanhá-lo-emos, ao justo, a caminhar para a mesma meta que o injusto, devido à ambição, coisa que toda a criatura está por natureza disposta a procurar alcançar como um bem; mas, por convenção, é forçada a respeitar a igualdade. E o poder a que me refiro seria mais ou menos como o seguinte: terem a faculdade que se diz ter sido concedida ao antepassado do Lídio [Giges]. Era ele um pastor que servia em casa do que era então soberano da Lídia. Devido a uma grande tempestade e tremor de terra, rasgou-se o solo e abriu-se uma fenda no local onde ele apascentava o rebanho. Admirado ao ver tal coisa, desceu por lá e contemplou, entre outras maravilhas que para aí fantasiam, um cavalo de bronze, oco, com umas aberturas, espreitando através das quais viu lá dentro um cadáver, aparentemente maior do que um homem, e que não tinha mais nada senão um anel de ouro na mão. Arrancou-lho e saiu. Ora, como os pastores se tivessem reunido, da maneira habitual, a fim de comunicarem ao rei, todos os meses, o que dizia respeito aos rebanhos, Giges foi lá também, com o seu anel. Estando ele, pois, sentado no meio dos outros, deu por acaso uma volta ao engaste do anel para dentro, em direcção à parte interna da mão, e, ao fazer isso, tornou-se invisível para os que estavam ao lado, os quais falavam dele como se se tivesse ido embora. Admirado, passou de novo a mão pelo anel e virou para fora o engaste. Assim que o fez, tornou-se visível. Tendo observado estes factos, experimentou, a ver se o anel tinha aquele poder, e verificou que, se voltasse o engaste para dentro, se tornava invisível; se o voltasse para fora, ficava visível. Assim senhor de si, logo tratou de ser um dos delegados que iam junto do rei. Uma vez lá chegado, seduziu a mulher do soberano, e com o auxílio dela, atacou-o e matou-o, e assim se assenhoreou do poder.

Se, portanto, houvesse dois anéis como este, e o homem justo pusesse um, e o injusto outro, não haveria ninguém, ao que parece, tão inabalável que permanecesse no caminho da justiça, e que fosse capaz de se abster dos bens alheios e de não lhes tocar, sendo-lhe dado tirar à vontade o que quisesse do mercado, entrar nas casas e unir-se a quem lhe apetecesse, matar ou libertar das algemas a quem lhe aprouvesse, e fazer tudo o mais entre os homens, como se fosse igual aos deuses. Comportando-se desta maneira, os seus actos em nada difeririam dos do outro, mas ambos levariam o mesmo caminho. E disto se poderá afirmar que é uma grande prova de que ninguém é justo por sua vontade, mas constrangido, por entender que a justiça não é um bem para si, individualmente, uma vez que, quando cada um julga que lhe é possível cometer injustiças, comete-as. Efectivamente, todos os homens acreditam que lhes é muito mais vantajosa, individualmente, a injustiça do que a justiça. E pensam a verdade, como dirá o defensor desta argumentação. Uma vez que, se alguém que se assenhoreasse de tal poder não quisesse jamais cometer injustiças, nem apropriar-se dos bens alheios, pareceria aos que disso soubessem muito desgraçado e insensato. Contudo, haviam de elogiá-lo em presença uns dos outros, enganando-se reciprocamente, com receio de serem vítimas de alguma injustiça. Assim são, pois, estes factos.

Quanto à escolha, em si, entre as vidas de que estamos a falar, se considerarmos separadamente o homem mais justo e o mais injusto, seremos capazes de julgar correctamente. Caso contrário, não. Qual é então essa separação? É a seguinte: nada tiremos, nem ao injusto em injustiça, nem ao justo em justiça, mas suponhamos que cada um deles é perfeito na sua maneira de viver. Em primeiro lugar, que o injusto faça como os artistas qualificados — como um piloto de primeira ordem, ou um médico, repara no que é impossível e no que é possível fazer com a sua arte, e mete ombros a esta tarefa, mas abandona aquela. E ainda, se vacilar nalgum ponto, é capaz de o corrigir. Assim também o homem injusto deve meter ombros aos seus injustos empreendimentos com correcção, passando despercebido, se quer ser perfeitamente injusto. Em pouca conta deverá ter-se quem for apanhado. Pois o supra-sumo da injustiça é parecer justo sem o ser. Dêmos, portanto, ao homem perfeitamente injusto à mais completa injustiça; não lhe tiremos nada, mas deixemos que, ao cometer as maiores injustiças, granjeie para si mesmo a mais excelsa fama de justo, e, se acaso vacilar nalguma coisa, seja capaz de a reparar, por ser suficientemente hábil a falar, para persuadir; e, se for denunciado algum dos seus crimes, que exerça a violência, nos casos em que ela for precisa, por meio da sua coragem e força, ou pelos amigos e riquezas que tenha granjeado. Depois de imaginarmos uma pessoa destas, coloquemos agora mentalmente junto dele um homem justo, simples e generoso, que, segundo as palavras de Ésquilo, não quer parecer bom, mas sê-lo. Tiremos-lhe, pois, essa aparência. Porquanto, se ele parecer justo, terá honrarias e presentes, por aparentar ter essas qualidades. E assim não será evidente se é por causa da justiça, se pelas dádivas e honrarias, que ele é desse modo. Deve pois despojar-se de tudo, excepto a justiça, e deve imaginar-se como situado ao invés do anterior. Que, sem cometer falta alguma, tenha a reputação da máxima injustiça, a fim de ser provado com a pedra de toque em relação à justiça, pela sua recusa a vergar-se ao peso da má fama e suas consequências. Que caminhe inalterável até à morte, parecendo injusto toda a sua vida, mas sendo justo, a fim de que, depois de terem atingido ambos o extremo limite, um da justiça, outro da injustiça, se julgue qual deles foi o mais feliz.

— Céus! Meu caro Gláucon! — exclamei —. Com que vigor te empenhas em limpar e avivar, como se fosse uma estátua, cada um dos dois homens, a fim de os submeter a julgamento!

Platão
Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira
Adaptação de Vítor João Oliveira
Retirado de República. Lisboa: Gulbenkian, 4ª ed., 1983, pp. 55-60.


3. NIETZSCHE

E se um dia ou uma noite um demónio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demónio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?” (aforismo 56) Gaia Ciência(1882)

Todas as coisas voltam eternamente e nós com elas; * nós já existimos uma infinidade de vezes, e todas as coisas connosco. * Regressarei como este sol, como esta terra, como esta águia, como esta serpente, não para uma vida nova ou para uma vida melhor ou semelhante. Voltarei eternamente para esta mesma vida * a fim de ensinar outra vez o eterno retorno das coisas, a fim de repetir mais uma vez as palavras *, a fim de instruir mais uma vez sobre o super-homem”.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Hemus, [s.d.]. p. 170.


4.

 

A LEI MORAL

(João Carlos Espada)

ORIGEM TEOLÓGICA DAS NORMAS MORAIS

[…]

O cristianismo não é apenas mais uma das múltiplas tradições religiosas que concorrem entre si nas sociedades seculares do Ocidente. O cristianismo, em particular a tradição moral judaico-cristã, é o berço do liberalismo incluindo o liberalismo secular que hoje dá o pano de fundo à cultura política ocidental. Embora não seja hoje “politicamente correcto” recordar isto, é isto que deve ser hoje recordado.

O maior e mais admirável princípio moral do cristianismo é o de que todos os homens são filhos do mesmo Deus, criados por Ele à Sua imagem e semelhança. Isto significa que todos os homens possuem o mesmo valor moral, a mesma dignidade moral. Por isso, nenhum indivíduo pode legitimamente tratar um seu semelhante como um meio: todos os indivíduos merecem ser tratados como um fim.

Como e porquê foram os cristãos capazes de proclamar este princípio moral quando isso era inteiramente contrário ao seu interesse próprio, tendo-lhes custado terríveis sofrimentos e perseguições? Isso só foi possível porque os cristãos acreditavam na existência de uma lei mais alta, uma lei moral independente dos caprichos dos homens e dos poderes de plantão. Os cristãos desafiaram o princípio subjacente a todas as tiranias – o princípio de que “o poder é o direito” – e declararam que a lei de Deus é mais alta do que a lei dos homens. Em suma, eles disseram que a distinção entre o bem e o mal não depende dos caprichos dos homens, de um, de alguns, nem mesmo de todos reunidos em colectivo.

Para os cristãos, a lei moral é dada por Deus e está contida nas Escrituras. É uma lei corajosa que manda auxiliar os que sofrem, perdoar os que nos ofendem, cumprir as promessas e respeitar os contratos, agir com temperança e não ser juiz em causa própria. A tentativa continuada de obediência a essas regras bem como a discussão crítica acerca delas, constituem um dos segredos – não certamente o único, mas seguramente um dos cruciais – que fez o prodigioso sucesso intelectual e material do Ocidente.

A lei moral das Escrituras é uma lei exigente, que exige esforço, mas não é uma lei só para alguns. Todos podem aceder à lei moral, porque todos são filhos de Deus – a lei moral foi inscrita no coração de todos os homens enquanto aptidão para descobrir a distinção entre o bem e o mal. O meio através do qual o homem pode descobrir a lei moral é a sua consciência, o seu sentido de responsabilidade pessoal, iluminado ou estimulado pelo estudo e pela discussão das grandes obras, nomeadamente pelo estudo e discussão da Bíblia.

Todos os grandes falsos profetas adorados no século XX – Nietzsche e Freud, Lenine e Estaline, Hitler e Mussolini – procuraram ridicularizar a ideia de consciência individual. Disseram que era um mito concebido para obrigar os homens a inibir ou restringir a sua liberdade, a refrear os seus poderes e apetites revolucionários. São típicos embusteiros: a consciência individual é a força moral mais poderosa ao cimo da Terra, mais poderosa do que os tiranos mais poderosos. É ela que nos impede de dormir quando erramos, que nos impele a desobedecer quando nos mandam fazer o mal, que nos leva a questionar a autoridade absoluta dos que pretendem substituir-se à lei moral.

Foi do reconhecimento da importância crucial da consciência individual que nasceu o lliberalismo Ao contrário do que pregam os discípulos da Revolução Francesa – um conflito estéril entre dois partidos autoritários e colectivistas, o do antigo regime e o da revolução –, o liberalismo não nasceu do combate contra a religião, muito menos contra o cristianismo. O liberalismo nasceu da convicção judaico-cristã de que existe uma lei moral mais alta que não depende dos poderes de plantão. E nasceu da convicção cristã de que essa lei mais alta – a lei moral – está inscrita no coração de todos os homens. Porque o Homem pode conhecer a lei moral, ele pode ser livre: este é o primeiro pressuposto do liberalismo.

Também a tolerância liberal não nasceu da convicção relativista de que a verdade não existe e de que apenas existem as verdades de cada um. A tolerância liberal nasceu da convicção – expressa por Miloton e Locke e – de que Deus, por ser bom, não deseja que os homens O sigam em resultado da coerção. A descoberta da lei moral deve fundar-se na adesão genuína da consciência individual. Em segundo lugar, a tolerância liberal nasceu da convicção cristã de que a condição humana é a da incerteza e do erro. Se a perfeição é vedada ao Homem, nenhuma autoridade humana deve ser investida da autoridade suprema de impor a lei moral: por ser humana, e portanto imperfeita, essa autoridade ficaria mais do que nunca sujeita à tentação do erro e do abuso de poder.

Mas é bem claro que a liberdade, neste sentido liberal original, é um fardo, não é a licença de agir como nos aprouver. É o fardo de sermos humanos, de termos de exercer o juízo crítico, de não devermos seguir a multidão ou os poderosos para fazer o mal. É também o fardo de uma busca que não tem fim, porque a condição humana veda-nos o acesso à certeza e à perfeição.

Esta é, em suma, a mensagem do Natal, a mensagem que deveria ser recordada por todos os liberais – crentes ou não crentes, conservadores ou progressistas –, por todos aqueles que estão conscientes da precariedade da nossa civilização e de quanto ela deve à tradição cristã.

Infelizmente, esta mensagem moral é hoje de novo ridicularizada por uma época de relativismo sem freios, que se reclama abusivamente da liberdade. A fatal arrogância dos falsos profetas convida os indivíduos a não respeitarem limites e a desprezarem todas as tradições. “Se Deus está morto” – dizem os relativistas – “tudo é permitido”.

Mas Deus não está morto. Mesmo para os não-crentes – designadamente para os liberais que são discípulos do iluminismo escocês de Hume, Smith e Ferguson de Burke, Acton e Tocqueville –, mesmo para esses, nos quais me incluo, Deus não está morto. Ele vive no coração de todos os homens, onde a lei moral está inscrita, e onde a consciência individual impele os homens a formular juízos morais assentes na distinção entre o bem e o mal. É por isso que vale a pena sair em defesa doNatal.

( ESPADA, João Carlos – A Tradição da Liberdade, p. 149-152)

4.A LEI MORAL

(João Carlos Espada)

ORIGEM TEOLÓGICA DAS NORMAS MORAIS

[…]

O cristianismo não é apenas mais uma das múltiplas tradições religiosas que concorrem entre si nas sociedades seculares do Ocidente. O cristianismo, em particular a tradição moral judaico-cristã, é o berço do liberalismo incluindo o liberalismo secular que hoje dá o pano de fundo à cultura política ocidental. Embora não seja hoje “politicamente correcto” recordar isto, é isto que deve ser hoje recordado.

O maior e mais admirável princípio moral do cristianismo é o de que todos os homens são filhos do mesmo Deus, criados por Ele à Sua imagem e semelhança. Isto significa que todos os homens possuem o mesmo valor moral, a mesma dignidade moral. Por isso, nenhum indivíduo pode legitimamente tratar um seu semelhante como um meio: todos os indivíduos merecem ser tratados como um fim.

Como e porquê foram os cristãos capazes de proclamar este princípio moral quando isso era inteiramente contrário ao seu interesse próprio, tendo-lhes custado terríveis sofrimentos e perseguições? Isso só foi possível porque os cristãos acreditavam na existência de uma lei mais alta, uma lei moral independente dos caprichos dos homens e dos poderes de plantão. Os cristãos desafiaram o princípio subjacente a todas as tiranias – o princípio de que “o poder é o direito” – e declararam que a lei de Deus é mais alta do que a lei dos homens. Em suma, eles disseram que a distinção entre o bem e o mal não depende dos caprichos dos homens, de um, de alguns, nem mesmo de todos reunidos em colectivo.

Para os cristãos, a lei moral é dada por Deus e está contida nas Escrituras. É uma lei corajosa que manda auxiliar os que sofrem, perdoar os que nos ofendem, cumprir as promessas e respeitar os contratos, agir com temperança e não ser juiz em causa própria. A tentativa continuada de obediência a essas regras bem como a discussão crítica acerca delas, constituem um dos segredos – não certamente o único, mas seguramente um dos cruciais – que fez o prodigioso sucesso intelectual e material do Ocidente.

A lei moral das Escrituras é uma lei exigente, que exige esforço, mas não é uma lei só para alguns. Todos podem aceder à lei moral, porque todos são filhos de Deus – a lei moral foi inscrita no coração de todos os homens enquanto aptidão para descobrir a distinção entre o bem e o mal. O meio através do qual o homem pode descobrir a lei moral é a sua consciência, o seu sentido de responsabilidade pessoal, iluminado ou estimulado pelo estudo e pela discussão das grandes obras, nomeadamente pelo estudo e discussão da Bíblia.

Todos os grandes falsos profetas adorados no século XX – Nietzsche e Freud, Lenine e Estaline, Hitler e Mussolini – procuraram ridicularizar a ideia de consciência individual. Disseram que era um mito concebido para obrigar os homens a inibir ou restringir a sua liberdade, a refrear os seus poderes e apetites revolucionários. São típicos embusteiros: a consciência individual é a força moral mais poderosa ao cimo da Terra, mais poderosa do que os tiranos mais poderosos. É ela que nos impede de dormir quando erramos, que nos impele a desobedecer quando nos mandam fazer o mal, que nos leva a questionar a autoridade absoluta dos que pretendem substituir-se à lei moral.

Foi do reconhecimento da importância crucial da consciência individual que nasceu o lliberalismo Ao contrário do que pregam os discípulos da Revolução Francesa – um conflito estéril entre dois partidos autoritários e colectivistas, o do antigo regime e o da revolução –, o liberalismo não nasceu do combate contra a religião, muito menos contra o cristianismo. O liberalismo nasceu da convicção judaico-cristã de que existe uma lei moral mais alta que não depende dos poderes de plantão. E nasceu da convicção cristã de que essa lei mais alta – a lei moral – está inscrita no coração de todos os homens. Porque o Homem pode conhecer a lei moral, ele pode ser livre: este é o primeiro pressuposto do liberalismo.

Também a tolerância liberal não nasceu da convicção relativista de que a verdade não existe e de que apenas existem as verdades de cada um. A tolerância liberal nasceu da convicção – expressa por Miloton e Locke e – de que Deus, por ser bom, não deseja que os homens O sigam em resultado da coerção. A descoberta da lei moral deve fundar-se na adesão genuína da consciência individual. Em segundo lugar, a tolerância liberal nasceu da convicção cristã de que a condição humana é a da incerteza e do erro. Se a perfeição é vedada ao Homem, nenhuma autoridade humana deve ser investida da autoridade suprema de impor a lei moral: por ser humana, e portanto imperfeita, essa autoridade ficaria mais do que nunca sujeita à tentação do erro e do abuso de poder.

Mas é bem claro que a liberdade, neste sentido liberal original, é um fardo, não é a licença de agir como nos aprouver. É o fardo de sermos humanos, de termos de exercer o juízo crítico, de não devermos seguir a multidão ou os poderosos para fazer o mal. É também o fardo de uma busca que não tem fim, porque a condição humana veda-nos o acesso à certeza e à perfeição.

Esta é, em suma, a mensagem do Natal, a mensagem que deveria ser recordada por todos os liberais – crentes ou não crentes, conservadores ou progressistas –, por todos aqueles que estão conscientes da precariedade da nossa civilização e de quanto ela deve à tradição cristã.

Infelizmente, esta mensagem moral é hoje de novo ridicularizada por uma época de relativismo sem freios, que se reclama abusivamente da liberdade. A fatal arrogância dos falsos profetas convida os indivíduos a não respeitarem limites e a desprezarem todas as tradições. “Se Deus está morto” – dizem os relativistas – “tudo é permitido”.

Mas Deus não está morto. Mesmo para os não-crentes – designadamente para os liberais que são discípulos do iluminismo escocês de Hume, Smith e Ferguson de Burke, Acton e Tocqueville –, mesmo para esses, nos quais me incluo, Deus não está morto. Ele vive no coração de todos os homens, onde a lei moral está inscrita, e onde a consciência individual impele os homens a formular juízos morais assentes na distinção entre o bem e o mal. É por isso que vale a pena sair em defesa doNatal.

( ESPADA, João Carlos – A Tradição da Liberdade, p. 149-152)

Última alteração: sábado, 8 de novembro de 2014 às 00:20